E se o Brasil usasse dólar?

-Qual a diferença entre inflação e infração?

-Na infração uma pessoa comete um erro e é punida. Na inflação algumas pessoas cometem um erro e todos são punidos.

A inflação é o aumento do preço dos produtos. Em 1990 o aumento de preços era assunto do momento,  muito mais do que hoje é o coronavírus. E talvez com mais mortes. Há várias causas para inflação, mas a a mais básica é a lei da oferta e da demanda. Adam Smith, o primeiro economista moderno, chamava de mão invisível do mercado. As coisas vão naturalmente se ajustando a um preço que todos acreditam que algo valha simplesmente por meio do mercado. Por conta disso há subida e alta de preços. Coloque arroz a 100 reais o quilo e ninguém comprará. Mas por dois ninguém quer vender. Então a mão invisível resolve tudo. É algo mais comum com produtos sazonais, como vegetais, carnes e eletrônicos da moda. Já deve ter visto o preço de um celular ou videogame cair muito quando a novidade passa. E de televisões, quando o mercado se enche de novos modelos. Mas, o que faz com que o dinheiro perca valor e não se compre mais com cem reais o que se comprava antigamente?


Basta apenas um produto mudar seu preço para haver um efeito cascata. Aumentando o preço da energia elétrica, combustíveis e manutenção de caminhões quase tudo ficará mais caro. Também pode haver aumento de taxas, e com produtos vindos de várias partes do mundo em pelo menos um haverá mudança de taxação. Então, é quase impossível o preço não aumentar. Quando se perder o poder de comprar as coisas, muitas pessoas morrem, seja por fome, por falta de produtos de higiene ou por falta de remédios e cirurgias. Na Venezuela hoje 80% das pessoas estão em extrema pobreza graças à hiperinflação.

Estamos acostumados com a ideia de que a inflação é ruim, mas a deflação é pior. Imagine que todo dia tudo fica mais barato. O dinheiro de um pão em dois dias é o bastante para comprar um pacote inteiro. Em quanto tempo o padeiro e o produtor de trigo vão querer mudar de ramo? Para evitar que algo necessário suma e que o dinheiro sempre circule, o governo precisa impedir isso. A deflação foi uma das causas do Japão ter decaído em comparação aos Estados Unidos. Em 1995 eles tinham um PIB per capita 50% superior ao americano. Em 2005 era de 15% inferior à dos EUA. Os japoneses não precisavam aplicar o dinheiro no banco, no mercado de ações ou abrir seu próprio negócio. Bastava deixar no próprio bolso. Sem estímulos, as pessoas esperavam sempre para comprar o que não precisavam e por fim, a economia japonesa não ameaça mais a americana. Era consenso geral que o Japão, não a China, seria o grande rival americano no século XXI. 

Já vimos que inflação e deflação são ruins, mas e manter tudo no mesmo preço? Boa pergunta, mas não temos uma boa resposta. Isso nunca aconteceu. O que define o valor de uma moeda é a confiança que se tem nela. Só que quem definiu o valor do dinheiro antes? O ouro. O padrão-ouro foi utilizado no mundo todo, ou quase, até cerca de 1930. Se alguém quisesse, poderia ir até o banco e trocar seu dinheiro todo em ouro. Isso é chamado de valor conversível. Os governos gastavam fortunas pra tirar ouro pra ficar preso no banco pra se algum dia alguém quiser poder pegar de volta? É, isso mesmo. Algo hoje um tanto sem sentido, então abandonamos o padrão-ouro.  Na Grande Depressão o povo trocava seu dinheiro por ouro, com medo de ele perder o valor. E de fato houve, com deflação de 25% nos Estados Unidos. E guardavam para um emergência. Isso diminui o dinheiro em circulação, o que causava mais deflação. O que aumentava a compra de ouro. Então o governo comprou o ouro de quem tinha guardado. Depois, proibiram as pessoas de ter ouro em casa. E por último, gastaram dinheiro a rodo para a população ter emprego em grandes obras públicas; mesmo que algumas não fizessem sentido. E de onde veio esse dinheiro? Eles imprimiram. 

1,45 dólares, em bolívares venezuelanos em 16/08/2020, o que vale um quilo de carne
Fonte: BBC

Agora teremos parenteses. Uma pergunta que quase toda criança já fez pros pais. Por que o presidente não imprime mais dinheiro pra acabar com a fome e dar remédio pra todo mundo? Por causa da lei da oferta e da demanda e da questão da credibilidade. Imagine que só existe um vendedor de gás na cidade. Todo mundo na vizinhança ganhou na loteria. E vão todos comprar gás. Só que não há bujão para todos. Então os preços aumentam, pelo aumento de demanda. O vendedor de gás está rico e vai comprar uma pizza. Com todos ricos, o preço também aumentou. E o dono da pizzaria, ah, você já entendeu. Imprimir dinheiro sem lastro causa mais inflação. E esse é um dos motivos de todos pagarem a conta quando há inflação. E ninguém passa a acreditar mais na moeda quando os custos aumentam tanto. Na década de 80 e 90 apartamentos eram anunciados em dólar. Na Alemanha pré-Hitler só se aceitava ouro. O lastro foi o ouro durante muito tempo. Hoje é utilizado o PIB em dólar. Fim do parênteses.

Os Estados Unidos não tiveram hiperinflação depois da compra do ouro porque havia oferta e demanda para todo esse dinheiro a mais que começou a fluir. Carros, casas, televisão, rádio, cinema, gibis. Muitas indústrias começaram aí sua época de ouro. O governo só pode imprimir dinheiro quando há demanda e nesse caso havia. O povo queria esses produtos todos e tendo com o que gastar, a impressão de mais dinheiro foi positiva. Durante a Segunda Guerra Mundial as impressoras continuaram ligadas na velocidade máxima. Os gastos militares foram altíssimo, e o país deixou de ser um país em que uma nação em cada quatro estavam desempregados para a potência mundial. Não se consegue fazer os preços ficarem sendo sempre os mesmos, porque a oferta e a demanda regulam tudo de uma hora para outra. Um pouco de inflação sempre existirá. O ouro parado não causa mudanças na economia. Por conta disso e do alto custo, o padrão-ouro não existe mais.

Ensine um papagaio a falar. Se disser oferta e demanda e terá um economista. Se falar fraude, fake news terá um influenciador digital. Se for "bom mesmo era a seleção do meu tempo" terá um jornalista esportivo. 

O ouro foi utilizado como padrão porque é sólido em temperatura ambiente, maleável em temperatura baixa, não é venenoso nem queima em contato com a pele. É mais raro que prata e cobre, então pela oferta/demanda seria necessário menos para fazer grande diferença. Uma boa moeda de troca, porque não se conseguia criar mais ou falsificar. Mas muitas outras coisas já foram utilizadas. Sal era usado em Roma e daí vem salário. Sementes de cacau no México, algodão no Nordeste do Brasil Colonial. Conchas na África. Tabaco nos Estados Unidos Colônia. (Uma esposa bonita que cuidasse bem da casa tinha cinquenta quilos de tabaco como dote, para garantir que o marido levasse fumo.) Qualquer material que demore para estragar e seja difícil de se falsificar que todos queiram serve como dinheiro. A ideia do papel é ser algo portátil e fácil de usar. E o estado é quem garante que o valor seja esse mesmo e todos aceitem. Acreditamos que um real valha um real porque o governo diz pra nós que vale. E o supermercado aceita. E o bar, o restaurante, o mecânico. A primeira versão de economia nacional foi uma praça em que todos trocavam. E o primeiro Ministério da Fazenda foi um sujeito forte com um tacape que dizia "vale isso mesmo e pronto". 

Certo, já vimos como funciona o dinheiro e a inflação comum. Mas e a hiperinflação, como a que teve no Brasil nos anos 80? Foi só impressão de dinheiro? Por que o Brasil não parou com isso? 

Não foi só isso. Havia também a questão de que o Banco do Brasil emprestava dinheiro para os clientes e se houvesse prejuízo se imprimia mais dinheiro e injetava no Banco. O que era uma falha de gestão grave. E havia a indexação. Conforme havia inflação, o governo aumentava o salário de todos os funcionários públicos e de todos os contratos que tinham. E as empresas e alugueis aumentavam também. A inflação se auto alimentava. Os mais ricos colocavam dinheiro no banco para render, ou comprava títulos do governo e outras maneiras diferentes de não perder o valor do dinheiro. O povo em geral corria para os mercados no mesmo dia. Chegava-se a um ponto em que não se sabia de fato quanto custava um produto. O açougue vendia uma carne muitas vezes por um preço menor do que ela custava no frigorífico, porque a variação era muito rápida. O que gerou muitos desabastecimentos, que aumentou a demanda e derrubou a oferta. 


O governo até poderia imprimir menos dinheiro se tivesse como pagar suas próprias contas. Usualmente se consegue dinheiro de fora via empréstimos, mas o Brasil deixou de pagar suas contas internacionais e a fonte secou. Afinal, quando alguém tem a fama de caloteiro fica mais difícil conseguir dinheiro emprestado. O Brasil também poderia vender títulos públicos do Tesouro Direto, mas as taxas eram altíssimas, já que para ser um rendimento precisa estar acima da inflação. Esses títulos é como se emprestássemos dinheiro para o governo. Compre por 100 reais e receba 120 daqui a um tempo. Pode vender mais cedo para o próprio governo, mas ganha-se menos. Esse é o meio mais comum hoje para o Brasil conseguir dinheiro sem aumentar inflação, porque gera dinheiro para o governo sem que ele flua para outros locais. Na época não era viável. Poderia também conseguir dinheiro com as exportações, mas só conseguia vender com a moeda nacional desvalorizada, o que aumentaria mais a inflação, porque geraria mais demanda de produtos com oferta igual. Então, junte isso tudo e temos quinze anos em que o Brasil teve inflação e recessão, o pior dos mundos. Outros países tiveram inflações maiores, mas só nós por tantos anos. A Alemanha imprimiu marcos pra pagar a dívida da Primeira Guerra Mundial. Hungria e Iugoslávia da Segunda. A Venezuela teve desabastecimento por conta da baixa demanda de petróleo, seu principal produto de exportação.  Zimbábue teve um esquema de pirâmide com seus títulos do Tesouro. O que explica por que a inflação é algo que um erra e todos pagam. Pagamos mais caro por conta de algumas pessoas gerirem mal a economia.

Para acabar com a hiperinflação o Brasil criou vários planos. O Collor ficou famoso por retirar todo o dinheiro que o povo tinha na poupança, exceto 50 dólares. O Cruzado proibiu comerciantes de aumentar o preço, até que muitos faliram e outros tiveram filas quilométricas por conta de desabastecimento. Durante anos havia anúncios oficiais de aumentos de preços de produtos básicos, como gasolina. E estoques de tudo o que estivesse barato no dia, como óleo de soja e papel higiênico. O povo em geral tinha as despensas como sua melhor poupança, porque o valor gasto lá rendia sempre. O Plano Real , de 1994, foi o último. Uma das medidas foi fazer o real ter o mesmo valor do dólar. Também aumentou o compulsório e a taxa de juros e diminui muito os gastos do governo, para precisar imprimir menos dinheiro. O Plano deu certo já no primeiro mês. Mas por que não usar o dólar logo?


Ter a própria moeda faz muita diferença para um país. Não é apenas o fato de que perde-se respeito internacional, do mesmo modo que um país sem exército. Um país sem moeda própria está com sua economia dependente de outro. Em parte por conta da desvalorização da sua moeda que a China é um grande exportador. Eles se esforçam para o yuan esteja sempre barato. Se o valor dobrasse em relação ao dólar, seria mais vantajoso para um alemão comprar de Singapura ou Vietnã e os próprios chineses poderiam comprar mais de outros países. Se o Brasil usasse o dólar perderia competitividade internacional. Venderíamos menos soja, minério de ferro, aço. E importaríamos mais. Afinal, se fosse o mesmo preço muitas pessoas escolheriam comprar o importado. O país como um todo ficaria mais pobre e haveria mais desemprego. Recessão. A princípio teríamos inflação com taxas parecidas com a americana. Mas se as taxas mudassem, aqui não teríamos os meios básicos de resolver o problema. E recessão com inflação é o pior dos mundos.

Não poderíamos parar de imprimir dinheiro, a medida mais básica. Uma outra maneira seria aumentar o compulsório. Bancos funcionam emprestando o dinheiro dos outros. Uma pessoa deposita mil reais, outra pega esses mil emprestado, uma terceira deposita os mesmos mil. Isso "cria" dinheiro. Para que menos dinheiro exista e menos falência bancária existe o compulsório, percentual que os bancos são obrigados a não mexer. Essa é uma medida para tirar dinheiro de circulação, usada também no plano real. Mas teria pouco efeito, porque a economia americana é muito mais forte. Poderia haver mudanças queda nas taxas de juros, para tirar o dinheiro estrangeiro do Brasil, mas isso tiraria a rentabilidade da maioria das aplicações. O que é um incentivo para criação de empresas, mas também para gastos imediatistas, o que gera mais inflação. O mais natural seria proibir a entrada de dinheiro estrangeiro. O que diminui mais ainda as exportações. A solução seria... criar uma moeda nacional. Resumindo, ruim com o real, pior com o dólar. Problemas parecidos com esses aconteceram quando o Euro foi criado, e como resultado vários países tiveram recessão, como a Grécia e Irlanda. Foram inundados por dinheiro estrangeiro, cresceram muito e depois ficaram com uma dívida muito maior que o PIB. O acesso a muito dinheiro fez muitos ficarem irresponsáveis e a inflação voltou a crescer nesses países. 

Foto de : https://fabiovalerios.wordpress.com/tag/inflacao/

Comentários

  1. Muitas dessas perguntas eu já havia me feito. Esclareceu bem, mas gostaria de um podcast com esse tema.

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